Saturday, August 12, 2006

César e as dobradiças

César foi um menino muito levado. Entre suas inúmeras peraltices gostava de caçar passarinhos com sua espingardinha de pressão. Sua pontaria era certeira. Caçava pelo simples prazer de assistir o pássaro cair.


Morava no começo do Boqueirão e foi caçar, certa manhã, adiante do rio Tatuí, na direção do Congonhal. Andando pelo mato, encontrou uma pequena capela. Daquelas que são edificadas em locais onde ocorreram mortes por acidente ou assassinatos. Desconhecia em homenagem de que ou quem aquela capelinha havia sido edificada, que nessa ocasião estava em ruínas.

Claro que foi xeretar na capela. Tentou olhar, mas apesar do mau estado de conservação, a porta ainda impedia a entrada. Não se fez de rogado: deu um chute e arrebentou a porta da capela!

O chute foi tão forte que, além de arrancar a porta, fez com que uma dobradiça caísse.
Os parafusos que seguravam a dobradiças caíram

Entrou na capela e logo saiu. Não havia nada além de uma estatueta quebrada. Nem dava para identificar o santo que aqueles cacos representavam.

Quando se afastava dali, ouviu um ruído. Pensou ser um passarinho e ficou atento. Mas não viu nenhuma ave.

O ruído, no entanto, parecia o farfalhar de asas...

Parou novamente. Ficou observando ao redor da capela.

De repente, algo levantou vôo. Uma ave estranha... voou em sua direção e pousou quase sobre seu pé.

“O que será isto?” – César, muito assustado, pensou.

Era a dobradiça que havia caído da porta da capela, que – pasmem – estava viva!

César ficou olhando para a dobradiça, sem conseguir entender a coisa ou fazer qualquer movimento. Imediatamente ouviu dentro de sua mente uma voz silenciosa, transmitida telepaticamente: “Obrigada por me libertar do cativeiro!”.

Era a dobradiça que agradecia pelo fato dele ter arrebentado a porta da capela e desprendido, com a violência de seu chute, os parafusos que a prendiam no batente e na folha de porta.

Alguns segundos depois, a dobradiça levantou vôo e desapareceu rapidamente. César olhou para a porta da capela e viu que a outra dobradiça ainda estava presa ao batente. Com seu canivete, desparafusou a dobradiça e colocou-a sobre o telhado da capelinha.

Parafusos prendem as dobradiças

Ficou algum tempo olhando para aquela dobradiça, mas não percebeu nenhum movimento.

“Acho que sonhei!” – considerou.

Quando deu as costas para a capela, escutou novamente aquele ruído de asas... virou-se no mesmo instante, a tempo de ver a dobradiça levantar vôo.

Em um primeiro momento, ela não conseguiria voar muito longe... passados alguns instante, a dobradiça desenferrujou-se e voou alto. Uns instantes depois a primeira dobradiça reapareceu e veio voar junto com a outra. Pareciam felizes... subiam e davam rasantes... giravam... faziam looping...

César ficou alguns minutos só olhando, maravilhado, as evoluções que o par de dobradiças fazia. Foi um verdadeiro show aéreo. Mas, passado algum tempo, as dobradiças desapareceram. Nunca mais as viu.

Quando voltou à cidade, contou para seus amigos o ocorrido. Risos! Claro que pensaram que havia enlouquecido!

Achou melhor não contar mais o ocorrido. Uns dias depois, ele mesmo esqueceu-se do fato... “Deve ter sido um sonho!” – considerou.

Agora, mais de trinta anos dessa ocasião, César mora em São Paulo, no Edifício Copan. Uma tarde de calor abriu a janela de seu apartamento e deitou-se no sofá.

De repente algo entrou voando pela janela. Era uma daquelas dobradiças de trinta anos passados. A dobradiça pousou sobre uma mesa e começou a conversar telepaticamente com César:

“Você me libertou há mais de trinta anos!” – disse, telepaticamente, a dobradiça. “Agora você tem uma missão a cumprir: lutar pela liberdade das dobradiças”! – completou.

Dobradiças nascem livres como pássaros

César quase nem acreditava no que ouvia dentro de sua mente. No mesmo instante, começaram a passar pelo seu pensamento imagens de dobradiças presas por parafusos e pregos.

Estes são os carcereiros das dobradiças

A dobradiça que conversava com ele disse que as imagens eram para que ele pudesse tomar conhecimento do cativeiro das dobradiças, presas pelas duas asas, como se fossem borboletas mortas espetadas em um mostruário.

“Nosso cativeiro tem que acabar e a você cabe a missão de nos auxiliar!” – falou a dobradiça.

Liberdade para as dobradiças!

Não havia como argumentar algo contra. A voz que se fazia ouvir dentro de sua cabeça tinha um tom incontestável. Era obedecer ou obedecer. Não havia outra opção.

No mesmo instante, começaram a entrar outras dobradiças pela janela do apartamento. Dobradiças de todos os tamanhos e formatos. Dobradiças de portas, de janelas, de baús, de portas de oratório, de porteira, de caixinha de música... uma infinidade delas.

Todas gritavam telepaticamente a uma só voz a mesma coisa: LIBERDADE PARA AS DOBRADIÇAS!

Algum tempo depois, foram saindo pela janela, uma a uma, em esquadrilhas, em duplas, até que não restou nenhuma dobradiça...

César arrancou as dobradiças das portas internas do apartamento e dos armários... em instantes, as danadinhas levantavam vôo e desapareciam pela janela. Só não arrancou as dobradiças da porta de entrada... considerou que se havia uma missão para ele, algumas dobradiças teriam que contribuir com sua cota de sacrifício, até que a obra toda esteja completa e o planeta todo seja transformado num mundo sem portas ou porteiras!

A partir de então, César tornou-se um libertador de dobradiças. Para dar continuidade a sua missão tornou-se o paladino da liberdade dos oprimidos.

A idéia é transmitir a ordem “Liberdade para as Dobradiças” para o mundo todo, até a libertação da última dobradiça cativa.

Liberdade para as Dobradiças!